O bem vindo fim das escolas literárias

Ao aprender literatura, nos acostumamos a dividir o tempo por períodos. Passeamos, assim, por humanistas como Gil Vicente, por classicistas como Camões, pelos arcadistas revolucionários que fizeram a Inconfidência, por românticos como José de Alencar e realistas como Machado de Assis. 

Essas escolas literárias, se assim pudermos chamá-las, tinham definições claras: por mais que cada autor tivesse seu próprio estilo, todos seguiam mais ou menos a mesma estrutura temática e encaravam o mundo pelas mesmas lentes. Pudera: o mundo, no passado, era relativamente uniforme. 

Não digo que não houvesse desigualdade nos séculos passados – o ponto aqui é outro. É que as desigualdades eram todas extremamente homogêneas. Eram tempos lentos, vagarosos, onde ideias levavam décadas ou mesmo séculos para se assentar. E, por isso mesmo, eram tempos que permitiam a maturação de movimentos e que traziam assim vantagens claras para toda a classe artística. 

Afinal, a partir do momento em que um grupo de autores gerava histórias com base nos mesmos preceitos estético-filosóficos, eles também se “autodivulgavam” em bloco e se ajudavam simbioticamente na formação de um público leitor cativo. Havia comunidade – uma comunidade coesa, útil, traduzida em círculos intelectuais formadores de opinião e difusores máximos de correntes de pensamento. Há como imaginar, por exemplo, um Mário de Andrade sem um Oswald de Andrade ou um Guimarães Rosa sem uma Clarice Lispector? Não é só que um tenha influenciado ou inspirado o outro: todos, juntos, formavam ondas coesas de difusão de suas óticas comuns da realidade. 

E hoje? Que escolas literárias consolidadas temos nos nossos tempos? 

Faço essa pergunta e escuto vácuo. 

OK, serei menos injusto: temos o realismo fantástico, para ficar em apenas um exemplo. Temos a literatura da perifa para ficar em outro. Temos ondas de biografias não autorizadas e de obras políticas neo-maquiavélicas que tem sido frequentemente consideradas como movimentos literários à parte. Temos muitas ondas e as vemos todas aqui no Clube de Autores, berço orgulhoso da literatura independente brasileira. 

Ondas, no entanto, não são escolas formadas, maduras. Ao contrário: há tanta coisa paralela rodando e com ciclos de vida tão apaixonadamente efêmeros que dificilmente podemos considerar uma nova escola literária com a força homogênea que o romantismo teve para o século XIX ou que o modernismo teve para a primeira metade do século XX. 

O motivo? A absurda quantidade de informação que cruza nosso mundo moderno e inspira a nossa forma de ver o mundo. 

Há tanta referência, tanta coisa diferente acontecendo em simultaneidade que o resultado é um óbvio caleidoscópio de estilos literários. Quase um para cada autor, arriscaria dizer. 

Isso é bom? 

Para os autores, há quem diga que não. Escolas coesas ficam cada vez mais difíceis de existir e esse tipo de divulgação em bloco acaba se transformando em algo tão raro quanto um político honesto. No mundo do excesso de informação, é cada um por si. 

Mas pense por outra ótica.

Se não temos escolas literárias consolidadas como no passado, também não temos padrões de pensamento que precisam ser seguidos quase que à risca para que sejamos “aceitos”. Ao contrário: o mercado do “cada um por si” também pode ser redefinido como uma realidade em que dependemos apenas de nós mesmos para alcançarmos o nosso público.

Há dificuldades no caminho? Certamente. Mas as facilidades são maiores principalmente para os mais autênticos, para os que menos se enxergam como parte de convenções pre-estabelecidas.  

E, no final, não se trata de elogiar ou condenar uma realidade. Realidades são para ser encaradas, não opinadas. 

Se a literatura moderna é a mais plural, democrática e sem preconceitos que já existiu, quem precisa de uma escola literária para impor seu tradicionalismo ultrapassado?

Ricardo Almeida

Sou fundador e CEO do Clube de Autores, maior plataforma de autopublicação do Brasil e que hoje responde por 27% de todos os livros anualmente publicados no país. Premiado como empreendedor mais inovador do mundo no segmento de publishing pela London Book Fair de 2014, sou também escritor, triatleta e, acima de tudo, pai de família :)

2 comentários em “O bem vindo fim das escolas literárias

  1. Há uma ingenuidade incrível na sua argumentação.

    Primeiro, a maioria da definição de escolas literárias é feita por críticos ao analisarem a história. Muito poucos artistas (seja na literatura ou nas artes plásticas) definiram-se como sendo desta ou daquela corrente no momento em que estavam produzindo, geralmente, o nome de uma corrente era dada, de forma depreciativa, pelos seus opositores. Foi apenas no início do século XX que dadaístas, cubistas, modernistas se definiram como tal, muito mais como uma posição política que estética. Ou seja, muitas vezes o que se disputava era o mercado literário.

    Camões não se autodefiniu classicista e Machado de Assis não se autodefiniu realista, aliás, estes autores são dois exemplos de exceções didáticas, tanto no ensino médio como na universidade de Letras aprendemos “Ah, Camões era classicista, mas a fase final da sua obra é maneirista”, “Machado transcende sua época e as classificações”. Continuamos a aprender sobre as escolas literárias porque a tradição definiu assim. Há estudos incipientes que fazem levantamento de autores que produziam com estéticas diferenciadas, em épocas passadas, e que ficaram de fora do cânone porque estavam à margem do “status quo”. Aliás, o próprio cânone é construído pela opinião da elite intelectual de uma época, Shakespeare, por exemplo, foi ignorado por muitos séculos até ser redescoberto pelos românticos.

    A segunda ingenuidade é achar que hoje não há uma escola ou corrente literária. Hoje, estas não são definidas tradicionalmente como eram no passado, mas existem. Afinal, como já adiantei, formar “um bloco coeso de autodivulgação” e um “público leitor cativo” sempre estiveram relacionados a mercado consumidor, e pouco relacionados a uma estética. Os grandes gênios que defenderam sua estética tiveram muito pouco ou quase nenhum retorno financeiro e reconhecimento em vida.

    Assim, hoje a literatura de autoficção é uma das correntes literárias atuais ditadas pelo mercado, nomes como Ricardo Lísias, Michael Laub foram bem sucedidos em se aliar esta estética – que nada mais é que “requentar” uma prática comum dos românticos, em fazer o público crer que a história lida era real e acontecida com o próprio escritor e familiares, “Amor de perdição” de Camilo Castelo Branco é o exemplo clássico.

    Outro exemplo de que atualmente temos correntes sim são os pequenos grupos de escrita criativa que ocorrem na casa de escritores que estão “em alta”. Com mensalidades que variam de R$150 a R$350 mês, o candidato a escritor pode discutir seu projeto de escrita com um dos mais recentes ganhadores de Jabuti e assim escrever “à moda” de seu mestre. Destes círculos saem novos escritores que creem ferrenhamente, por exemplo, que um narrador não pode aparecer com opiniões pessoais no texto, e criticam, indignados, quem por acaso cometeu tal heresia; afinal “a morte do narrador” é uma tendência da literatura contemporânea, claro que o narrador não pode “aparecer” no texto! (fui testemunha de um debate deste tipo).

    Meu exemplo final de que há sim correntes atuais, são as constantes publicações de blogs voltados para novos escritores que, frequentemente, dão dicas do tipo “Veja quais são os estilos que as editoras publicam para ver em qual deles seu livro se enquadra” (se não me engano esta foi uma manchete do seu blog, inclusive.). Ora, se eu, como escritora, tenho que ficar atenta para ver onde meu livro “se enquadra” no que as editoras querem, isso quer dizer que, para ser publicada, eu tenho que me alinhar a uma corrente estética.

    1. Oi Melissa! Não sei se concordo que escolas literárias e enquadramento em uma linha de uma editora são a mesma coisa. Também não é verdade que todas as escolas literárias foram assim denominadas por críticos posteriores. Isso pode ser verdade para algumas (como o classicismo), mas não para outras (como o modernismo brasileiro). Ainda assim, com ou sem nome, o fato é que eram tempos em que grupos coesos de autores seguiam um pensamento editorial semelhante e se “auto-influenciavam”.

      Dado ainda que estamos falando de uma era pre-Internet (e, portanto, com uma fortíssima carência de circulação literária se comparada aos nossos tempos), essa influência que um exercia sobre o outro mais servia para fortalecer as suas correntes de pensamento, erigindo verdadeiros muros contra pensamentos opostos até que estes ganhassem força gradualmente e os sobrepusessem.

      Não discuto que haja, hoje, diferentes correntes de pensamento literário. Ao contrário: o que pontuo é que há tantas correntes e ondas convivendo simultaneamente que dificilmente temos o que pode ser chamado de uma “escola literária dominante” como foram o realismo, o romantismo e outros em seus tempos. E isso vai também além de “etiquetar a literatura”, por assim dizer: esse tipo de profusão de estilos é tão importante para a cultura que, em minha opinião, vivemos uma era de anarquia literária cujos frutos são movimentos menos densos estruturalmente, mas mais amplos e acessíveis aos tantos gostos que existem por aí.

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