Como ensinar uma criança a amar livros

Desde que virei pai, há quase exatos 5 anos, venho me perguntando qual é a maneira perfeita de se ensinar o amor pela literatura para a minha filha.

Quando eu era pequeno, aprendi que há milagres em cada livro em rodas de histórias contadas por uma velha bibliotecária em minha escola. À época, aquela uma hora duas vezes por semana era a única, praticamente, que me empurrava para fora da realidade e para universos feitos de fantasias.

Hoje, claro, o mundo é bem diferente – e tentar forçar métodos de ontem para crianças de hoje dificilmente dará algum resultado.

Abro aqui um parêntese: há os saudosistas incuráveis, aqueles que crêem que se crianças não jogarem gude ou se cederem às seduções da Internet e do vídeo-game estarão invariavelmente fadadas a um futuro sombrio e solitário. Não me incluo entre esses. Ao contrário: sempre acreditei que a maneira mais saudável de criar filhos é justamente contextualizar os valores que queremos que eles tenham na realidade que os cerca. Eliminar os impulsos da era da informação é, para mim, o mesmo que formar um ser do século XIX para, no futuro, inadvertidamente catapultá-lo para o século XXI – uma receita que dificilmente dará resultados positivos.

Mas isso é outro assunto. Por hora, voltemos ao mundo das histórias para crianças.

Crianças hoje não vivem mais naquele obscurantismo praticamente medieval que cercava a humanidade até poucas décadas atrás. Sim: a mesma roda de histórias que me encantava quando eu tinha 5 ou 6 anos encanta também a minha filha em sua escola hoje – mas de forma diferente.

Na minha infância, a história do João, do Pedro ou da Maria eram a história do João, do Pedro ou da Maria. Ou seja: havia uma linha nítida que separava fantasia de realidade, uma linha tão inquestionável que ela tinha data e hora para se materializar.

Hoje, os gatilhos para fantasias são tantos que as linhas se atenuaram. Hoje, há como mergulhar em milhares de desenhos 24 horas por dia, há como se escolher dentre uma infinidade de opções as brincadeiras desejadas e há como se misturar fantasia com realidade a qualquer instante.

Se eu tiver que isolar uma diferença entre os universos infantis da década de 80 e de hoje, afinal, eu diria que é essa:  há tanta fantasia cercando crianças hoje, e de maneira tão intensamente sob demanda, que pode-se dizer que a dificuldade não está em fazê-las amar a literatura e sim em fazê-las se aprofundar mais em cada história.

Explico-me melhor: no longínquo passado de décadas atrás, as opções eram tão parcas que, para melhor aproveitar o tempo, as crianças acabavam buscando toda uma densa intimidade com os poucos personagens infantis à disposição.

Hoje não há apenas Pedrinho e Narizinho, João e o Pé de Feijão e esses seres de antigamente: há Peppas, Lunas, Mashas e todo um universo Pollys com vida própria que surgem e desaparecem nos labirintos do Youtube. Há tantas histórias e personagens que a possibilidade de uma criança se aprofundar em uma delas, colhendo os ensinamentos que sempre moram em suas páginas, é cada vez mais difícil. Em outras palavras: a superfície é tão sedutora, imensa e bela que mergulhos aprofundados acabam se fazendo raros. Raríssimos.

Voltemos, pois, à pergunta que abriu este post: como ensinar o amor à literatura para crianças?

Arrisco uma resposta apegando-me ao puro e inegável empirismo: emprestando à literatura um pouco do universo real da criança e usando este universo como maneira de seduzi-la para as profundezas de cada livro.

Sim, pode-se contar a história de uma avó maluca que amava fazer doideiras com a neta (sendo esta uma das histórias preferidas da minha filha). Mas e se a avó tivesse o mesmo nome da avó real – ou se a neta tivesse o mesmo nome da criança? E se, em uma história envolvendo um grande grupo de crianças, muitas tivessem os nomes de colegas reais?

Faça esse teste em casa.

Eu fiz. O resultado foi impressionante: de repente, aquele momento com o livro aberto passou a se diferenciar de todos: foi o único em que realidade e fantasia se mesclaram não apenas na imaginação, mas também nas páginas de um livro.

Foi, também, o momento em que os olhos da minha filha mais ficaram esbugalhados, que a atenção mais ficou extremada e que a curiosidade mais foi aguçada.

Em minha mente, o amor pela literatura se mede por esses três elementos: o estado dos olhos, da atenção e da curiosidade. Se todos permanecerem em estado de pura adrenalina é porque a receita está funcionando.

Em minha mente, isso também é um indicativo importantíssimo: significa que a maneira de se formar os leitores do futuro parte de uma mudança radical na maneira que concebemos as histórias. Hoje, os personagens precisam ser as próprias crianças em uma mescla de realidade com ficção singular ao ponto de fazê-las sentir, e não apenas ouvir, cada frase proferida em uma narrativa.

Dad and two kids reading

 

 

 

Ricardo Almeida

Sou fundador e CEO do Clube de Autores, maior plataforma de autopublicação do Brasil e que hoje responde por 27% de todos os livros anualmente publicados no país. Premiado como empreendedor mais inovador do mundo no segmento de publishing pela London Book Fair de 2014, sou também escritor, triatleta e, acima de tudo, pai de família :)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *