A história, diz o ditado, é sempre contada pelo vencedor – ou por quem for mais capaz de investir para popularizar a versão que mais convenha aos seus interesses.
Essa pode ser uma visão um pouco cínica ou, no mínimo, bastante cética – mas é fato que tudo o que conhecemos como passado não é mais que o que nos foi contado, quer por nossos próprios ancestrais ou por fontes oficiais do governo.
E, como diria George Orwell, “o passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não pára de se transformar”. Exemplos disso não faltam.
Zumbi dos Palmares, um dos maiores símbolos da resistência negra morto pelo governo colonial português em 1695, é um deles. Ninguém sabe, exatamente, qual a história real de Zumbi – mas muitos a criaram ao sabor das suas conveniências e como reforço dos seus ideais.
Há, pelo menos, três mitos totalmente diferentes sobre a história de Zumbi. No primeiro, que prevaleceu até a segunda metade do século XIX, ele era o líder de uma comunidade – Palmares – que se dedicava à barbárie, à perversão, ao ódio e à destruição de uma sociedade plenamente funcional. Na primeira metade do século XX, ele se transformou em um idealista marxista, lutando pelos oprimidos e buscando uma sociedade igualitária. Finalmente, já a partir do final do século XX, ele é redefinido como um herói das lutas pela liberdade de todos – negros, indígenas e até mesmo camponeses brancos empobrecidos.
Uma única pessoa, três histórias absolutamente diferentes. Segundo o historiador Laurentino Gomes, Zumbi não foi nenhum desses três personagens. Ele representou, claro, a possibilidade de fuga e de uma vida melhor para os escravizados do que as que eles levavam nos engenhos pernambucanos de então – mas a comunidade que liderava também tinha os seus próprios escravos, as suas próprias agruras e realidades de uma dureza que superava, e muito, qualquer idealismo utópico.
Da mesma forma que Zumbi, Tiradentes também teve a sua imagem cuidadosamente costurada e alterada de acordo com as conveniências dos diferentes governos que lideraram o Brasil colônia ou o Brasil independente.
E, mundo afora, os exemplos de personagens cujas histórias reais pouco tem a ver com as histórias oficiais são tantos que, provavelmente, nenhum de nós é sequer capaz de conhecer a verdadeira História da humanidade.
Porque, perceba, cada um dos diferentes Zumbis e Tiradentes etc., nos levaria a pintar quadros absolutamente diferentes das sociedades em suas épocas – quadros que levariam a interpretações igualmente díspares e completamente distantes umas das outras. Quadros que, sob suas tantas camadas de tintas ideológicas, praticamente enterram o que realmente acontecia à época.
Há algum antídoto para isso, para descobrirmos como era uma sociedade por trás das imagens idealizadas de seus mitos, de seus símbolos?
As micro-histórias
Um dos maiores escritores da atualidade, o italiano Carlo Ginzburg, costuma buscar esse antídoto no que ele chama de micro-história: a história dos normalmente anônimos personagens convencionais de um determinado tempo contada a partir de documentações de suas épocas. Ao invés de falar sobre reis e rainhas e generais, por exemplo – que sempre são enaltecidos ou endemoniados – ele disseca a vida de camponeses que viveram, por exemplo, nos tempos difíceis da peste bubônica. São grandes histórias sobre o que o mundo costuma considerar, erroneamente, pequenas pessoas – mas que, por isso mesmo, conseguem pintar quadros muito mais realistas e puros sobre as dificuldades de um determinado tempo e de um determinado lugar.
Temos muitas micro-histórias publicadas aqui, no Clube de Autores, e o episódio de hoje falará justamente com a autora de uma delas.
Nossa convidada de hoje: Cleomara Reis
Entra em cena Cleomara Reis, autora de Africanidades: Uma Narrativa Cultural do Centro Paulistano, um livro-reportagem sobre a cultura africana e o seu impacto na rotina do bairro da República (localizado no centro da cidade de São Paulo), por meio da história eletrizante de personagens africanos e brasileiros.
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