Não há presente melhor para uma criança do que toda a sabedoria do mundo em forma de páginas
Dia das Crianças, Natal, aniversários: datas para darmos presentes a crianças não faltam. Mas o grande problema é que, como sociedade, quase sempre acabamos encarando presentes como “bens” que devem ser dados aos filhos (ou sobrinhos ou netos) por conta de alguma ocasião específica.
E veja: não quero menosprezar aqui nenhum tipo de brinquedo ou roupa ou qualquer coisa. Mas o fato é que, de todos os presentes possíveis, há apenas um que realmente abre as portas do mundo para as crianças: o livro.
E, se você é um escritor, então entende mais que qualquer humano comum o valor que a literatura tem para formar o espírito, a alma de qualquer criança.
Ensinar amor pela literatura significa formar contadores de história
Quando eu era pequeno, aprendi que há milagres em cada livro em rodas de histórias contadas por uma velha bibliotecária em minha escola. À época, aquela uma hora duas vezes por semana era a única, praticamente, que me empurrava para fora da realidade e para universos feitos de fantasias.
Hoje, claro, o mundo é bem diferente – e tentar forçar métodos de ontem para crianças de hoje dificilmente dará algum resultado.
Abro aqui um parêntese: há os saudosistas incuráveis, aqueles que crêem que se crianças não jogarem gude ou se cederem às seduções da Internet e do vídeo-game estarão invariavelmente fadadas a um futuro sombrio e solitário. Não me incluo entre esses. Ao contrário: sempre acreditei que a maneira mais saudável de criar filhos é justamente contextualizar os valores que queremos que eles tenham na realidade que os cerca. Eliminar os impulsos da era da informação é, para mim, o mesmo que formar um ser do século XIX para, no futuro, inadvertidamente catapultá-lo para o século XXI – uma receita que dificilmente dará resultados positivos.
Mas isso é outro assunto. Por hora, voltemos ao mundo das histórias para crianças.
A linha entre realidade e fantasia em nossos dias
Crianças hoje não vivem mais naquele obscurantismo praticamente medieval que cercava a humanidade até poucas décadas atrás. Sim: a mesma roda de histórias que me encantava quando eu tinha 5 ou 6 anos encanta também a minha filha em sua escola hoje – mas de forma diferente.
Na minha infância, a história do João, do Pedro ou da Maria eram a história do João, do Pedro ou da Maria. Ou seja: havia uma linha nítida que separava fantasia de realidade, uma linha tão inquestionável que ela tinha data e hora para se materializar.
Hoje, os gatilhos para fantasias são tantos que as linhas se atenuaram. Hoje, há como mergulhar em milhares de desenhos animados 24 horas por dia, há como se escolher dentre uma infinidade de opções as brincadeiras desejadas e há como se misturar fantasia com realidade a qualquer instante.
Se eu tiver que isolar uma diferença entre os universos infantis da década de 80 e de hoje, afinal, eu diria que é essa: há tanta fantasia cercando crianças hoje, e de maneira tão intensamente sob demanda, que pode-se dizer que a dificuldade não está em fazê-las amar a literatura e sim em fazê-las se aprofundar mais em cada história.
Explico-me melhor: no longínquo passado de décadas atrás, as opções eram tão parcas que, para melhor aproveitar o tempo, as crianças acabavam buscando toda uma densa intimidade com os poucos personagens infantis à disposição.
Hoje não há apenas Pedrinho e Narizinho, João e o Pé de Feijão e esses seres de antigamente: há Peppas, Lunas, Mashas e todo um universo Pollys com vida própria que surgem e desaparecem nos labirintos do Youtube. Há tantas histórias e personagens que a possibilidade de uma criança se aprofundar em uma delas, colhendo os ensinamentos que sempre moram em suas páginas, é cada vez mais difícil. Em outras palavras: a superfície é tão sedutora, imensa e bela que mergulhos aprofundados acabam se fazendo raros. Raríssimos.
Voltemos, pois, à pergunta que abriu este post: como ensinar o amor à literatura para crianças?
Respondo apegando-me ao puro e inegável empirismo: emprestando à literatura um pouco do universo real da criança e usando este universo como maneira de seduzi-la para as profundezas de cada livro.
Sim, pode-se contar a história de uma avó maluca que amava fazer doideiras com a neta (sendo esta uma das histórias preferidas da minha filha). Mas e se a avó tivesse o mesmo nome da avó real – ou se a neta tivesse o mesmo nome da criança? E se, em uma história envolvendo um grande grupo de crianças, muitas tivessem os nomes de colegas reais?
Faça esse teste em casa.
Eu fiz. O resultado foi impressionante: de repente, aquele momento com o livro aberto passou a se diferenciar de todos: foi o único em que realidade e fantasia se mesclaram não apenas na imaginação, mas também nas páginas de um livro.
Foi, também, o momento em que os olhos das minhas filhas mais ficaram esbugalhados, que as atenções mais ficaram extremada e que as curiosidades mais foram aguçadas.
Para mim, o amor pela literatura se mede por esses três elementos: o estado dos olhos, da atenção e da curiosidade. Se todos permanecerem em estado de pura adrenalina é porque a receita está funcionando.
Imaginar faz parte de aprender a ler
Uma das características que mais difere um livro de, digamos, um filme, é que no primeiro a participação ativa do “receptor da história” é fundamental. Em um filme, personagens e cenários já aparecem imaginados por alguém: nomes já têm rostos, lugares já tem cores e, para nós, basta nos acomodarmos na adrenalina do que acontecerá depois.
No livro é diferente. No livro, o próprio leitor precisa construir rostos e paisagens em sua mente a partir de uma costura entre o que foi escrito e o que ele tem de referencial armazenado em seu cérebro. Saber imaginar, portanto, é fundamental para se saber ler bem.
E o que pode instigar a criança ainda mais nesse aspecto? A mudança de papel.
E se a própria criança tiver a incumbência de criar uma história, de escrever ou desenhar uma narrativa para, depois, contá-la ao adulto?
Essa inversão de papéis pode ser importantíssima para o seu desenvolvimento.
Por que tudo isso importa?
O que mais nos diferencia de outros animais é justamente a nossa capacidade de contar histórias. Apenas nós, humanos, conseguimos encapsular passado, presente e futuro e, de alguma maneira, tecer linhas narrativas que permitam que as mentes dos nossos pares atravessem qualquer tipo de barreira imposta pelo Tempo em si.
E não há nenhuma, absolutamente nenhuma profissão que não dependa disso. Um bom vendedor é aquele que consegue contar uma boa história para o seu cliente; um bom médico é aquele que consegue interpretar fatos e usá-los para tecer novos “capítulos” a partir de tratamentos que julgar necessários; um bom advogado é aquele que consegue construir uma narrativa forte o suficiente para convencer juízes; e assim por diante.
O que fazemos quando ensinamos nossas crianças a imaginar e criar histórias? Preparamos cada uma delas para que escrevam as suas vidas da maneira que preferirem.
Quer presente melhor que esse?