Os modernistas de 22 costumavam falar que não existia, no Brasil, uma identidade realmente particular. À época, nós admirávamos a arquitetura francesa, líamos europeus e americanos, babávamos em quadros e esculturas feitas do lado de fora das nossas fronteiras.
Sim, isso mudou bastante. Sim, hoje temos uma inegável identidade tipicamente brasileira, algo que nos define e nos segmenta do resto do mundo. Ainda bem: não há como melhorarmos como povo se não soubermos bem quem somos.
Dia desses fiquei me perguntando de onde ela – essa nossa identidade – veio.
Me perguntei isso enquanto terminava de ler o Quinze, de Rachel de Queiroz, ignorando que a resposta estava em minhas mãos.
Identidades de um povo, pensei, surgem das maneiras com que ele encara as suas próprias desgraças, da forma com que ele cisma em renascer das cinzas.
Em nosso caso, concluí – e perdoem-me se acharem essa conclusão enviesada demais – que a noção de Brasil nasceu na aridez infernal do sertão.
Não que não tivéssemos os nossos Machados de Assis antes dos nossos Guimarães Rosas – gênios sempre aparecem em qualquer ponto da história da humanidade. Mas as histórias escritas por aqui até o princípio do século XX, embora fabulosas, poderiam facilmente ter se passado em Paris, em Londres, em Nova York. Até então, o Brasil não era um lugar – era um conjunto de coordenadas geográficas.
Não era o caso de Chico Bento e de Conceição, protagonistas do Quinze, que sofreram a fome e a miséria em uma das maiores secas que o Brasil vivera. Não era o caso de Paulo Honório, que impôs a sua própria lei em São Bernardo quando não havia nenhuma que o conviesse. Não era o caso de Baleia, cadelinha que assassinada pelo próprio dono em Vidas Secas. Não era o caso de Riobaldo, jagunço desafiando os perigos da vida com oportunismo e coragem.
Em todos esses personagens havia fé, perseverança, senso próprio de justiça contrariando ambientes corruptos, perigosos, difíceis. Para mim – e não há quem me convença do contrário – o Brasil que conhecemos nasceu no sertão.
Ele cresceu a partir daí: se expôs nas selvas do Hatoum, nas modernidades de Clarice Lispector, na boemia largada de Jorge Amado. Cresceu e se tornou o que é hoje.
Mas a grande questão sobre identidades nacionais não é apenas o seu passado – é o seu futuro.
Se o Brasil nasceu do sertão, onde ele nascerá de novo? Onde a Fenix da nossa identidade renascerá, em que cantos estarão despejadas as cinzas das nossas novas desgraças?
Nas políticas populistas que nos dilaceraram? Nas nossas belas e destroçadas capitais da beleza, como o Rio ou Salvador? Na convulsões desesperadas da urbe paulistana? Ou em nossas terras sem lei, onde escravos ainda suam e índios tem as mãos decepadas por discordarem do homem branco?
Desgraças, infelizmente, não nos faltam aqui em nossas terras.
Que elas minguem rapidamente – é o mínimo que podemos desejar.
Mas que, no caminho, nos ensinem mais sobre quem somos.