Shakespeare, a linguagem e o enredo

No final do século XVI, Shakespeare era encenado em um teatro iluminado pelo sol e totalmente desprovido de qualquer noção mínima de higiene. 

Os espectadores, quase todos analfabetos, se enfileiravam por bancos desconfortáveis. Quando sentiam vontade de ir ao banheiro, urinavam e defecavam ali mesmo, sem sequer se levantar, o que dava ao ar um toque assombrosamente fétido. Enquanto Hamlet definhava a partir do próprio sofrimento, uma plateia de miseráveis desdentados se encantava, chorava e gargalhava com falas que, curiosamente, capturavam seus corações embrutecidos pelo clima da Inglaterra jacobiana. 

Mas… como? 

Como uma literatura que hoje é tida como altamente intelectual conseguia ser tão entendida e louvada por analfabetos sujos e mal educados? 

Não tenho uma resposta definitiva para isso… mas tenho um palpite. O segredo talvez não esteja nos enredos sinuosos de Shakespeare e de seus pares imortais e sim na linguagem. 

Explico-me. 

MacBeth nunca foi uma criação a partir do ar. Ao contrário, foi a adaptação da história de um rei escocês real feita para agradar o rei James I, para quem a peça foi escrita. Quase tudo, até as bruxas, foi inserido na trama para agradar ao monarca. 

Rei Lear também foi adaptado a partir da história real de um monarca que viveu 800 anos antes de Cristo – mas não foi isso que agarrou o imaginário instantâneo do público. Ao contrário, foi algo muito mais próximo: uma disputa judicial entre o velho ex-secretário da Rainha Elisabeth I e suas três filhas que virou o grande assunto (ou fofoca) das ruas inglesas. Essa disputa, curiosamente, era muito parecida com a história do Rei Lear, que acabou sendo usada para representar a realidade. 

Há inúmeros exemplos nessa mesma linha, de histórias simples que se imortalizaram como as maiores obras de arte da humanidade. O motivo? 

Se os enredos esbarram no lugar-comum, no equivalente a uma novela ancestral contada para uma audiência com limitadíssima capacidade intelectual, o que fez dos clássicos, clássicos? O que fez MacBeth, Lear e Hamlet, além de tantos outros, sobreviverem aos séculos? 

A linguagem. 

Há trechos de cada uma das peças de Shakespeare que se tornaram universais pela maneira com que foram compostos. 

“A vida é uma história contada por um idiota, repleta de som e fúria, que não significa absolutamente nada.” (MacBeth)

“Ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, responsabilizar as estrelas pela sua natureza de bode.” (Rei Lear)

Frases como essas inundam cada uma das peças de Shakespeare. 

Frases como essas inundam, aliás, cada um dos grandes clássicos da história da humanidade, condensando em palavras cuidadosamente escolhidas o óbvio da alma humana. 

E é isso que faz uma grande história. São pensamentos assim, expressados na mais sofisticada simplicidade, que transformam obras literárias em obras de arte. 

O resto, a trama em si, o enredo, é apenas mobília: fundamental para a história e irrelevante para a sua imortalidade. 

Ricardo Almeida

Sou fundador e CEO do Clube de Autores, maior plataforma de autopublicação do Brasil e que hoje responde por 27% de todos os livros anualmente publicados no país. Premiado como empreendedor mais inovador do mundo no segmento de publishing pela London Book Fair de 2014, sou também escritor, triatleta e, acima de tudo, pai de família :)

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