No primeiro post desta série, passeei pelas histórias de três personagens – Sr. Biswas, de V.S. Naipaul, Ruth Swain, de Niall Williams, e Gregor Samsa, de Franz Kafka – e sobre como elas mudaram as percepções do mundo pelo simples fato de terem sido criadas e contadas.
No segundo, comparei a vida de um desses personagens “fictícios” com a de um ser humano “legalmente real”, basicamente questionando a diferença entre ambos dado que, no final, no grande plano da vida, personagens e pessoas acabarão se transformando rigorosamente na mesma coisa: poeira cósmica.
Já abro este post agora pedindo licença para entrar em um tema que costuma ser muito, muito polêmico: a religião. Não vou discutir fés, claro: cada um tem liberdade plena de crer no que quiser.
Mas considere essa questão: se um dos principais papéis de um Deus – novamente, de qualquer que seja a religião – é criar vida, e se, do ponto de vista da física, um personagem criado por um escritor é tão vivo quanto um ser humano de carne e osso, então não seria um escritor também uma espécie de Deus?
A frase pode parecer estranha, esquisita, até insultante para muitos: mas dê uma chance a ela. Dispa-se de dogmas cegos, prenda-se unicamente à sua razão.
Voltemos aos três personagens do primeiro post desta série.
O mundo do Sr. Biswas incluía uma numerosa família que ele abominava em uma ilha escaldante perdida no meio do Caribe.
O mundo de Ruth Swain incluía uma saga de gerações de sua família, na chuvosa Irlanda, em busca do que talvez seja o mais sagrado dos objetivos: a o auto-entendimento.
O mundo de Gregor Samsa incluía uma opressão sem paralelos na então cinza e rarefeita Praga.
Os três mundos foram inspirados na realidade – mas nasceram, foram criados a partir das energias criativas de seus três escritores: Naipaul, Williams, Kafka. Os três, cada um a seu modo, criaram protagonistas, antagonistas, coadjuvantes, cenários, acasos, adversidades, desafios, vitórias. Os três criaram enredos marcantes, severos, inspiradores.
Os três criaram vida. Os três criaram Vida.
Sim, pode-se argumentar que as Vidas por eles geradas nunca respiraram, nunca tiveram sangue pulsando pelas veias, nunca se fisiologizaram nas podridões típicas da humanidade. Mas que diferença isso faz, principalmente à luz do segundo post desta série, inteiramente preso à fórmula mágica de Einstein que prova que energia e matéria são apenas formas diferentes da mesma coisa? Há, afinal, alguém que questione a poderosa energia contida em cada livro – energia capaz de inspirar pessoas e mudar o mundo de maneira tão singular?
Dificilmente.
Escritores, sim, também são Deuses Criadores. Às suas próprias modas.
Aliás, eu iria além: dado que criar histórias é algo inerente a qualquer ser humano, escritor ou não, todos somos parte Deuses. Todos somos tão criatura quanto criadores.
E esse, sem a menor sombra de dúvidas, é o grande, o maior poder da história.