O papel do livro na formação de opinião depende de sua ampla liberdade
Sempre acreditei que havíamos ultrapassado os escuros tempos em que livros eram queimados, autores execrados e leitores desafiadores, insistentes, condenados. Nossos tempos, nosso firme apreço à liberdade de expressão que, de certa forma, já se entranhou na própria derme social, garantem que páginas queimadas já sejam páginas viradas em nossa curta porém densa história cultural.
O caminho até a liberdade de expressão
Chegar até aqui não foi uma caminhada simples e nem tampouco livre de seus mártires.
Em nome de Deus, inquisidores espanhóis queimaram exemplares únicos de livros escritos pelos Maias, transformando em mistério eterno o que poderia ser uma fonte incalculável de sabedoria.
Em nome de uma visão torpe de superioridade racial, nazistas fizeram suas fogueiras com livros proibidos justamente por cumprirem os seus papéis literários: incentivar o livre pensamento.
Em nome da esquerda, a União Soviética queimou mais livros e torturou autores que, em nome do que há de mais característico à raça humana – a capacidade de raciocínio – ousaram questionar o status quo.
Em nome da direita, ditaduras militares no Brasil, no Chile, na Argentina e em tantos outros lugares também repetiram a fórmula.
Até que, um dia, provavelmente cansados de tentar barrar pensamentos com músculos, governantes de quase todo o mundo enxergaram a ineficácia de se tentar enxugar gelo e decidiram parar.
Porque livros, enquanto compêndios de ideias, sempre foram e sempre serão muito mais fortes do que qualquer regime por um motivo simples: a eternidade conferida à letra impressa sempre vencerá a mortalidade de um líder, de um partido, de uma corrente ideológica temporariamente no poder. É simples assim.
Bom para todos nós, seres pensantes, que passamos a ter tantos, tantos títulos à nossa disposição. Precisamos gostar de todos? Não, claro que não. Mas podemos escolher.
Gostamos de uma determinada temática? De um determinado autor? De um determinado enredo? Compramos e lemos.
Raciocinamos em cima.
Formamos a nossa opinião – independentemente das vontades de governantes, de líderes ou mesmo de editores.
Somos livres e temos – em grande parte graças a essa revolução literária chamada de autopublicação, em que a censura inexiste – milhares de opções de literatura ao nosso alcance.
O mundo melhorou por causa do livro
Vivemos em uma sociedade repleta de problemas e desafios, não nego. Mas é errado, é de uma desconexão histórica inconcebível, acreditar que o mundo esteja piorando. Porque não eram só livros as vítimas dos fogos do passado: eram ideias e pessoas. Mortes por tortura em praça pública eram comuns; guerras que catapultavam cabeças decepadas por muralhas inimigas eram o cotidiano; mortes em massa por doenças pútridas como a Peste Negra eram inevitáveis; genocídios em nome de brasões nacionalistas eram apoiados por todos, de papas a governantes. Hoje, exceto por um ou outro grotão ultrapassado no nosso planeta, a realidade é inegavelmente diferente, mais iluminada, mais pacífica, mais… feliz. E por que? Por causa do livro.
O livro que eliminou fronteiras e uniu povos ao compartilhar histórias de tantos com tantos mais; o livro que permitiu o desenvolvimento de uma sociedade muito mais individualista, no bom sentido, do que servil; o livro que, ao atiçar a imaginação, fez com que o homem desenvolvesse visões de futuro que para sempre mudaram a o presente.
O livro nos trouxe até aqui. Repito: ainda há um caminho imenso a ser percorrido até a utopia que instintivamente buscamos – mas o século XXI é inegavelmente melhor, em todos os aspectos, que o século XIX, XVIII, XI.
Os vilões contrarrevolucionários
Mas há – como provavelmente sempre haverá – aqueles que resistem aos tempos, ignoram a história e tentam forçar suas visões torpes ao mundo.
E enviam fiscais a bienais de livro para censurar e recolher livros que pregam pensamentos diferentes dos deles.
E insistem, mesmo tendo colhido sucessivas derrotas até nas cortes podres que governam nosso país.
E seguem cegamente embalados por massas que compartilham suas ideias mas que, incrivelmente, não enxergam que o futuro é incerto por definição e que, eventualmente, eles poderiam passar de persecutores a perseguidos em um punhado de anos, meses, semanas.
Sim, nosso presente é inegavelmente melhor que nosso passado – mas é também inegável que há forças políticas intensas buscando censurar, coibir, impor muros e ideias para evitar que livres intercâmbios sociais ocorram. Eles vencerão?
Dificilmente. Se mesmo no passado, quando o conhecimento era escasso e limitado a poucos, combater ideias se mostrou impossível, repetir a tentativa hoje é de uma insanidade suicida.
Mas isso não significa que devamos ignorar, calados, suas tentativas. Como leitores, como cidadãos, como humanos, devemos gritar e brigar pelo que temos de mais sagrado: nosso direito de formar a nossa própria opinião. Nosso direito de ler o que quisermos. Nosso direito de escrever e publicar as nossas histórias sem que nos sujeitemos a opiniões de censores burocratas retardados.
A resposta da sociedade
Sempre acreditei que havíamos ultrapassado os escuros tempos em que livros eram queimados, autores execrados e leitores desafiadores, insistentes, condenados. Continuo acreditando, principalmente pela ampla cobertura crítica da mídia e pela notícia de que o faturamento da Bienal do Rio triplicou depois da polêmica – e por causa dela. O prefeito Crivella tentou censurar um livro? A resposta da sociedade foi simples: ela enfiou a mão no bolso e comprou esse mesmo livro com uma sede colossal.
É assim que livros vencem monstros.
Parabéns à literatura. Parabéns aos leitores brasileiros.